Santa Hildegarda

O legado espiritual e intelectual que chega ao Brasil

Santa Hildegarda de Bingen, monja beneditina, mística, teóloga, escritora e doutora da Igreja e ainda pouco conhecida no Brasil, tem despertado crescente interesse do público, especialmente por seus escritos sobre medicina natural. As suas obras foram singulares para a sua época, unindo ciência, natureza e fé de forma profundamente inspiradora, antecipando muitas práticas modernas de saúde e bem-estar. Hildegarda tinha uma compreensão profunda do ser humano, que considera todos os aspectos de sua vida, como corpo, mente e espírito, e refletia essa visão em seus ensinamentos.

No Brasil, já estão disponíveis traduções importantes, como “Causae et Curae – Sobre as Doenças e as Curas”, que aborda a medicina natural segundo sua visão holística do ser humano, e “Physica – Sobre as propriedades naturais das coisas criadas”, onde ela descreve plantas, pedras, animais e seus usos terapêuticos. No campo espiritual, seus escritos místicos revelam uma profunda experiência com Deus, como se vê em “Liber Divinorum Operum – O Livro das Obras Divinas”, “Scivias – Conhece os Caminhos”, e “Liber Vitae Meritorum – O Livro dos Méritos da Vida”.

Comentário

Santa Hildegarda de Bingen foi uma figura de extraordinária sabedoria, cujo testemunho de vida, santidade e ensinamentos continua a ser uma fonte de inspiração tanto para fieis quanto para estudiosos, ao longo dos séculos. Monja beneditina, mística, teóloga e escritora, destacou-se por sua contribuição singular à espiritualidade cristã e à tradição do pensamento teológico medieval.

Em reconhecimento à relevância de sua obra, Santa Hildegarda foi proclamada Doutora da Igreja pelo Papa Bento XVI, em 7 de outubro de 2012. Tal título, conferido por um pontífice amplamente reconhecido por sua sólida formação teológica — Joseph Ratzinger (1927–2022), nomeado pelo Papa João Paulo II, em 25 de novembro de 1981, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) —, destaca não apenas o valor da herança teológica e mística de Hildegarda, mas também estabelece uma conexão significativa entre ambos, que compartilham uma origem comum na Alemanha.

A decisão de elevá-la ao título de Doutora da Igreja ressalta a atualidade de sua mensagem, reafirmando sua influência duradoura sobre a espiritualidade cristã. A sua obra não apenas enriqueceu o pensamento de sua época, mas também continua, ainda hoje, a oferecer importantes contribuições para a compreensão da relação entre fé, natureza e corpo.

Biografia

A seguir, apresentamos sua biografia, destacando episódios significativos de sua trajetória, que evidenciam a riqueza de sua espiritualidade e conhecimento.

Infância e vocação precoce

Santa Hildegarda de Bingen nasceu em 1098, na vila de Bermersheim, situada na região do Reno, atual território da Alemanha. Proveniente de uma família pertencente à pequena nobreza local, era a décima filha de Hildebert e Mechtild.  Naquele período, era costume entre as famílias nobres oferecer o décimo filho à Igreja, como uma espécie de “dízimo espiritual”. Assim, desde a infância, Hildegarda foi destinada à vida religiosa.

Desde pequena, Hildegarda já vivia experiências místicas que, mais tarde, se tornariam muito importantes em sua missão e nos livros que escreveu. Quando tinha cerca de oito anos, foi entregue aos cuidados de Jutta von Sponheim, uma mulher muito virtuosa que vivia reclusa no Mosteiro de Disibodenberg, da Ordem de São Bento. Com Jutta, Hildegarda recebeu uma boa formação religiosa: aprendeu a cantar os salmos, a liturgia das horas, a tocar instrumentos e a louvar a Deus com o canto. Jutta levava uma vida muito austera, feita de penitência e sacrifícios. Hildegarda seguia seus ensinamentos, mas de forma mais equilibrada, preferindo a moderação nas práticas espirituais. Foi nesse ambiente que ela cresceu, aprendendo a rezar, meditar e contemplar, formando assim a base da sua vida espiritual.

Jutta teve um papel fundamental na formação intelectual e espiritual de Santa Hildegarda e foi beatificada pelo Papa Pio VII em 1807. Embora seja uma figura sem uma biografia escrita, sua memória litúrgica era celebrada em 22 de dezembro. Embora tenha sido retirada do Martirológio Romano, sua vida de devoção, oração e reclusão permanece como um exemplo de dedicação à união com Deus e à vida monástica.

Aos 15 anos, Hildegarda fez seus votos religiosos e consagrou-se completamente a Deus, abraçando a vida monástica segundo a Regra de São Bento. Esse passo decisivo ocorreu no Mosteiro de Disibodenberg, sob a orientação de sua magistra (uma função similar à de mestra), Jutta von Sponheim. Ao longo de sua jornada, Hildegarda cresceu em graça, sabedoria e virtude, tornando-se um modelo de fidelidade ao Senhor e uma fonte de inspiração para todos ao seu redor.

A morte de Jutta de Sponheim e a fundação do mosteiro

Após a morte de Jutta de Sponheim, em 22 de dezembro de 1136, Hildegarda de Bingen assumiu a liderança da comunidade feminina no mosteiro de Disibodenberg. Jutta viveu como eremita em uma célula anexa ao mosteiro e atuava como magistra (uma função similar à de mestra), mas não tinha o título formal de abadesa. Quando Jutta faleceu, Hildegarda, então com cerca de 38 anos, assumiu com humildade e coragem a responsabilidade de conduzir a comunidade.

Após assumir a liderança da comunidade em Disibodenberg, Hildegarda sentiu-se movida por uma inspiração divina a erguer um mosteiro em Rupertsberg, nas proximidades de Bingen, em um local que se acredita ter sido o túmulo de São Rupert, um missionário e bispo que desempenhou um papel importante na cristianização da região do Reno. Em 1150, com o apoio de seu confessor, o monge Volmar de Disibodenberg, e a autorização do arcebispo de Mainz, Arcebispo Arnoldo de Selenhofen, ela deu início à fundação daquele que se tornaria um lugar de profunda vida de oração, silêncio e serviço a Deus. O mosteiro de Rupertsberg logo se destacou como um centro de espiritualidade, estudo e acolhimento, onde Hildegarda conduzia e acolhia mulheres que desejavam se tornar religiosas, além daquelas que já a acompanhavam, com sabedoria e fidelidade à vontade de Deus.

Reprodução Digital do Mosteiro de Rupertsberg, Alemanha

Atuação pública e cartas

Ao longo de sua vida, Hildegarda manteve uma intensa correspondência com diversas personalidades de seu tempo, tornando-se uma conselheira respeitada tanto no âmbito eclesiástico quanto político. Escreveu cartas a papas, como Eugênio III, a imperadores, como Frederico Barbarossa, e a diversos bispos, monges e nobres, oferecendo conselhos espirituais, exortações e advertências com autoridade profética. Suas visões, acolhidas e reconhecidas pela Igreja, não apenas moldaram a vida religiosa de sua comunidade, mas também exerceram profunda influência sobre a teologia e a espiritualidade do século XII.

Durante o período de construção do mosteiro de Rupertsberg, um evento significativo afetou profundamente Hildegarda. Em 1151, Richardis de Stade, amiga próxima de Hildegarda, foi transferida para o mosteiro de Bassum, na Diocese de Bremen. Richardis provavelmente desempenhou um papel importante na compilação da grande obra teológica de Hildegarda, Scivias, e sua partida foi um impacto para Hildegarda, que tinha grande apreço por ela. Essa decisão não foi uma escolha pessoal de Richardis, mas uma ação imposta pelas autoridades eclesiásticas, influenciadas pelo arcebispo Hartwig de Bremen, irmão de Richardis, que a chamou para liderar a comunidade de Bassum. Richardis foi elevada à função de abadessa nesse mosteiro.

Em sua tentativa de reverter a situação, Hildegarda escreveu cartas tanto ao arcebispo Hartwig quanto ao papa Eugênio III, pedindo que reconsiderassem a transferência. No entanto, seus esforços foram em vão, e Richardis seguiu para Bassum, onde veio a falecer em 1152.

As experiências místicas e escritos teológicos

Foi próximo dos 43 anos de idade que as experiências místicas de Hildegarda, manifestadas por meio de visões, se intensificaram de maneira decisiva. A partir desse momento, suas revelações tornaram-se mais vívidas e recorrentes, sendo por ela descritas como manifestações diretas do divino. Em suas visões, Hildegarda via imagens e símbolos que expressavam a natureza de Deus, os mistérios da criação e a relação profunda entre o ser humano e o Criador. Essas experiências eram sempre acompanhadas de uma “luz viva”, que a iluminava interiormente e a guiava na interpretação espiritual dos conteúdos que lhe eram revelados.

Quando Santa Hildegarda começou a registrar suas experiências místicas, ela se deparou com o contexto social, cultural e eclesiástico da Idade Média, marcado por um fervor religioso profundo, mas também por um ceticismo significativo em relação às revelações privadas. A Igreja, com sua estrutura autoritária, exercia um controle rigoroso sobre qualquer experiência desse tipo, temendo que tais manifestações pudessem representar desvios da ortodoxia cristã ou até heresias. Além disso, o papel das mulheres na Igreja era amplamente restrito, e o envolvimento feminino em questões teológicas ou espirituais era frequentemente questionado.

Diante desse cenário, Hildegarda procurou o apoio de São Bernardo de Claraval, uma das figuras mais influentes na Igreja medieval, especialmente na reforma promovida pela Ordem de Cister. Ele era um dos maiores teólogos e defensores da ortodoxia católica na época. O apoio de São Bernardo se concretizou após ele ler e avaliar as visões de Hildegarda. Reconhecendo a profundidade espiritual de suas revelações, ele recomendou que suas obras fossem respeitadas e aceitas. Esse respaldo foi fundamental, pois, na época, a aprovação de uma figura de grande prestígio como São Bernardo garantiu que suas ideias e escritos fossem ouvidos e valorizados pela Igreja. O apoio de São Bernardo foi crucial para a aceitação pública e eclesiástica de sua obra “Scivias”, que mais tarde foi também validada pelo Papa Eugênio III, consolidando a autenticidade de suas visões e ensinamentos.

O Papa Eugênio III, que governou de 1145 a 1153, desempenhou um papel crucial na validação das visões de Santa Hildegarda de Bingen. Após o apoio de São Bernardo, Hildegarda apresentou sua obra Scivias ao Papa. Durante um sínodo em Tréveris — cidade de grande importância religiosa e política na Idade Média, atualmente localizada na Alemanha —, Eugênio III reconheceu as revelações de Hildegarda como autênticas. Esse reconhecimento papal foi fundamental, consolidando Hildegarda como uma teóloga de autoridade em uma época em que o papel das mulheres na Igreja era amplamente restrito e questionado.

Falecimento

Santa Hildegarda de Bingen faleceu em 17 de setembro de 1179, aos 81 anos, no mosteiro de Rupertsberg, que ela mesma fundou. Mesmo com a saúde debilitada, continuou a guiar sua comunidade com fidelidade aos desígnios de Deus. O Papa João Paulo II, em 8 de setembro de 1979, em sua carta ao Cardeal Hermann Volk, Bispo de Mainz, por ocasião do 800º aniversário da morte de Santa Hildegarda, disse:

Ela que, embora sempre doente, mas dotadíssima de forças espirituais e verdadeiramente 'mulher forte', era chamada antigamente 'profetisa da Alemanha'... Até a vida e a ação desta celebérrima Santa nos ensinam que a união com Deus e o cumprimento da vontade divina são os bens que acima de todos devem ambicionar, sobretudo aqueles que escolhem o caminho estreito no estado religioso. A estes convém dirigir as palavras mesmas de Santa Hildegarda: 'Vede e andai pelo caminho direito' (Santa Hildegarda, Epist. CXL; PL 197, 371).

Este trecho destaca a grandeza espiritual de Santa Hildegarda, sublinhando a profundidade de seu legado, que continua a iluminar e a inspirar a vida cristã, bem como a firme adesão à vontade divina. Sua vida e ensinamentos permanecem um modelo de dedicação total a Deus, especialmente para aqueles que abraçam a vocação religiosa.
O Papa João Paulo II, na mesma carta, afirmou:

Os cristãos hão-de sentir-se impelidos a traduzir agora a mensagem evangélica no seu próprio teor de vida. Além disso, esta mestra, cheia de Deus, mostra que o mundo só pode ser entendido e governado, se visto como criatura saída das mãos do Pai que está nos céus, cheio de amor e providência. Por fim, o cuidado que ela, como infatigável serva do Salvador, tornou das almas e dos corpos dos seus contemporâneos, levará os homens de boa vontade, que agora vivem, a ajudarem segundo as suas posses os irmãos e irmãs que se encontram em necessidade.

Essas palavras do Papa revelam a essência do ensinamento de Santa Hildegarda, que nos chama a viver a mensagem evangélica de forma concreta, traduzindo a fé em atitudes cotidianas. A visão dela de que o mundo é uma criação divina, que deve ser governada com amor e providência, desafia os cristãos a verem todas as coisas sob o olhar de Deus. O seu exemplo de serviço incansável, tanto no cuidado espiritual quanto físico dos outros, continua a orientar os fieis a praticarem a caridade e o amor ao próximo com verdadeira generosidade, buscando sempre atender às necessidades daqueles que estão ao seu redor.
Santa Hildegarda de Bingen: A proclamação como Doutora da Igreja

Santa Hildegarda de Bingen foi proclamada Doutora da Igreja por Sua Santidade o Papa Bento XVI em 7 de outubro de 2012, por ocasião da abertura do Sínodo dos Bispos sobre a Nova Evangelização. Atribuiu-se-lhe esse título em reconhecimento à eminente santidade de vida, à ortodoxia doutrinal e à relevância perene de seus escritos para a vida e a missão da Igreja.

Ao proclamá-la Doutora da Igreja, Bento XVI sublinhou a profundidade teológica e espiritual da obra de Hildegarda, caracterizada pela fidelidade à fé católica, pela riqueza mística de suas visões e pela clareza com que transmitia verdades de ordem moral, litúrgica, cosmológica e escatológica. Seus escritos, sempre apresentados como frutos de revelação divina, foram reconhecidos como uma contribuição única e significativa à tradição teológica cristã.

Com esta proclamação, Santa Hildegarda tornou-se a quarta mulher da história a receber o título de Doutora da Igreja — ao lado de Santa Teresa de Jesus, Santa Catarina de Sena e Santa Teresinha do Menino Jesus —, reafirmando o valor da contribuição feminina à vida intelectual, espiritual e pastoral da Igreja.

Fontes:
https://hildegardtour.com/tour/hildegard-and-richardis

error: Esse conteúdo é protegido.
Rolar para cima